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coordenaçãoJoséMárioSilva
actual@expresso.pt
ninguém sabia viver. Voltados pa- aconteceu na Nigéria, onde o pai para Israel. É uma viagem duríssi- va de deixar o Exército ou um asi-
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ra o deserto, faziam a sua oração servia como cirurgião do Exército ma, que lhe faz descobrir a reli- lo psiquiátrico”, explica J.M.G. Le
DESERTO sem palavras. Como num sonho, britânico. Se refiro este percurso gião. Mesmo sem conseguir a Clézio no intróito a este romance
J.M.G. iam-se embora, desapareciam”. A sinuoso, que passa ainda por Bris- paz, encontra a chave do sonho antigo, o primeiro, que lhe valeria
LeClézio narrativa encerra uma nota pes- tol e Londres, é porque se reflecte num cruzamento fortuito com o Prémio Renaudot de 1963, ante-
Dom Quixote, soal, pois o autor prestou aqui nas suas mais de quatro dezenas Nejma, que abandona a sua terra rior aos Índios, ao México e aos de-
2008, trad. um tributo aos antepassados de de obras e muito em particular em sentido contrário, com as co- sertos. Recentemente reeditado,
de Fernanda Jemia, com quem casara, e que em “Estrela Errante”. Até aos lunas de palestinianos, em direc- reli-o para confirmar o que sabia:
Botelho, 290 viera do horizonte movente das anos 70, Le Clézio dedicou-se a te- ção aos campos de refugiados. é um belíssimo romance. E se me
págs., ¤17,50 areias, sob um céu vasto e límpi- mas como a linguagem, a escrita, Nos respectivos e sucessivos exí- pedissem que o abreviasse em
ROMANCEUma viagem entre o do, onde ainda ecoavam os derra- a loucura, o absurdo quotidiano e lios, nunca deixarão de pensar três penadas, acrescentaria à des-
deserto mítico e a desilusão da deiros fragores de uma batalha os limites da comunicação, na li- uma na outra e na quase certeza crição do próprio que é a história
grande cidade. perdida contra os destruidores nha de Perec e Butor. Após esse de um reencontro. É um livro que de um homem que se pôs um dia
da vida natural. período de experimentação e de perturba não só pela beleza das a perseguir um cão. Era esta a
“O SOL ergue-se por cima da ter- José Guardado Moreira angústia, a que alguns chama- palavras mas pela actualidade e imagem que tinha; é a imagem
ra, as sombras espraiam-se na ram lucidez extrema, surge um pelo seu carácter premonitório. que perdura. Cão e homem inver-
areia cinzenta, na poeira dos ca- escritor homónimo, que parece fi- Luísa Mellid-Franco tem às tantas os papéis, e nesse
minhos. As dunas detêm-se dian-
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nalmente reconciliado com a in- quadro aparentemente avesso à
te do mar. No céu muito azul, frio, ESTRELA fância, a vida, as viagens, enfim, lógica está tudo o que de mais ra-
não há um pássaro, uma nuvem. ERRANTE com o mundo. E é neste período
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dical trespassa a obra deste au-
Há Sol.” O império do sol e das J.M.G.LeClézio de tréguas e serenidade que nas- OPROCESSO tor: uma visão do real que enfren-
areias plana nestas páginas, que Dom Quixote, ce um dos mais belos romances DEADÃO ta os paradoxos e que escapa a to-
receberam o Prémio Paul Mo- 2008, trad. que me foi dado ler. A viagem POLLO do o maniqueísmo — o humano,
rand da Academia Francesa. Con- de Maria através das suas páginas é simul- J.M.G. não como transcendendo a maté-
siderado como uma súmula da ar- do Carmo Abreu, taneamente interior e exterior e LeClézio ria, mas o humano inscrito absolu-
te de Le Clézio, este livro acompa- 296 págs., ¤17 percorre-se imaginando a peque- Europa-América, tamente na matéria. Aquilo que
nha, em dois registos diferentes, ROMANCEUma belíssima na aldeia de St. Michel durante o 2008, trad. Valéry terá deixado antever quan-
um histórico e outro ficcional, a narrativa, intensa e actual. Verão de 1943, em que Es- de Manuel do escreveu: “Le plus profond
vida dos nómadas dos desertos ther-Hélène Grève-Estrellita, de Villaverde Cabral, 198 págs., ¤17,10 c’est la peau.” Assim, a denúncia
do Norte de África, os homens e JEAN-MARIE Gustave Le Clézio é apenas 13 anos, descobre o que ROMANCEA história de um do materialismo, da solidão urba-
mulheres que apenas conhecem oriundo de uma família bretã que significa ser judeu em tempo de homem que persegue um cão. na, do excesso de ruído, do consu-
o céu como tecto e as dunas co- terá emigrado para as ilhas Maurí- guerra — através do medo, da hu- mismo sem freio, a que muitos re-
mo morada. Lalla encarna essa cias. Durante a II Guerra Mundial, milhação, da fuga com a mãe pe- “‘O PROCESSO de Adão Pollo’ con- sumem a obra de Le Clézio, é um
longa e esquecida linhagem de a mãe e os filhos refugiaram-se las montanhas, da morte do pai. ta a história de um homem que tiro aquém e pueril, pois foi tam-
pessoas que foram marginaliza- em Nice. A reunião familiar só Sobreviventes, resolvem emigrar não sabia bem ao certo se acaba- bém ele quem disse num ensaio
das, escravizadas e massacradas extraordinário (“L’extase matériel-
tanto pelos exércitos coloniais co- le”): “O corpo é vida, o espírito é
mo pelos reinos africanos. Ela é morte. A matéria é ser, o intelecto
descendente de um desses ho-
mens míticos do deserto, primei- AOPÉDA
umaética,émaisumaetiqueta.O nada.” Trata-se, pois, como se in-
queestaquestãodaevidência tui logo nesta narrativa de estreia,
ro guerreiro depois santo, cingido
pelo albornoz de lã branca, capaz
LETRA
intemporaldosvaloresacabapor de nos religar à matéria, telúrica,
esconderétudoaquiloquepertence primeva (Herberto Helder tradu-
de milagres que lhe dão a aura do aumcertoregimedediscurso,queé ziu-o, não certamente por aca-
respeito devido a um “homem construídoenãopodeserobjectode so...), como bem se expressa nes-
azul”. Entre o deserto e a costa, consenso.Eissochama-sepolítica. te diálogo: “‘Adão, fazes-me medo
entre as tendas e as caravanas,
O consenso ético significa
Reclamar,paraumpartido,a assim nessa posição, não te me-
entre o mar e a grande cidade referênciaàéticaeaosvaloresnão xes, não respiras, dir-se-ia um ca-
francesa, o trajecto de Lalla é um esvaziamento da política significaoutracoisasenão dáver...’ ‘Idiota!’, respondeu Adão,
uma viagem dolorosa em direc- despolitizar.Umpartidopolíticonão ‘interromper a minha contempla-
ção à maternidade. Mas o seu éumacomissãodeética;etambém ção! Agora acabou-se, seria preci-
olhar luminoso, em vez de ficar nãoé,ounãopodeser,umgrupode so recomeçar tudo desde o princí-
cristalizado numa foto de revista, malfeitores.Masquandoaideologia pio.’ ‘Recomeçar o quê?’ ‘Nada, na-
anseia pelo ar aberto do deserto e POR ANTÓNIO GUERREIRO éticapenetraemforçanoterritório da... Não te posso explicar. Tinha
pela árvore onde possa, enfim, Numarecenteentrevista,Rui dapolítica,esvazia-adedebate,de já chegado ao vegetal... Aos mus-
descansar e dar à luz. Em “L’exta- MachetedefendeuqueoPSDdevia conflito,depolémica.Emsuma: gos, aos líquenes... Estava pertíssi-
se matérielle”, Le Clézio escreveu tornar-seum“partidodevalores”. despolitiza,àsemelhançada mo das bactérias e dos fósseis.
algo que pode situar a sua percep- Estaquestãodos“valores”parece economiaedabiopolíticamodernas. Não te posso explicar.’” E seria
ção do mundo: “A força da arte valenteevalorosa,masfazpartede Assimcomoaliteraturanãosefaz com certeza interessante, se espa-
provém do facto de nos dar a umatagarelicehumanitáriaquenada combonssentimentos,apolítica ço houvesse, comparar o jovem
olhar as mesmas coisas em con- maistemparaoferecerdoqueo baseadanos“valores”conduzaum Adão em fuga com o desassosse-
junto.” E em liberdade, pois “to- consensoético,sobumaforma niilismodeondeestáausente gado Holden Caulfield, desse ou-
dos os dias, ao primeiro alvor, os doutrinária.Emrigor,nãoétanto qualquerpensamento. tro inclassificável que dá pelo no-
homens livres regressavam à sua me de Salinger.
morada, lá para o Sul, onde mais Ana Cristina Leonardo
Expresso 31 Janeiro 2009 33
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