Expresso, 31 de Janeiro de 2009 PRIMEIRO CADERNO 09
Miguel
Sousa
Tavares
E este céu sempre cinzento
ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO/WHO
U
m homem é aquilo cas, para os ginásios ou para um sem-nú- aliados os bandidos de salão. Não lhe co- “numa denúncia anónima de 2005... le-
que é, mais aquilo que
Ninguémpodeexigira
mero de truques com os quais julgam po- bro os professores: cobro-lhe os contento- vantar hipóteses não confirmadas”...
faz e aquilo que lhe
JoséSócrates,aocontrário
der enganar eternamente o que, pela na- res. Não lhe cobro os hospitais sem doen- Posto isto, afastado o cheiro a cilada po-
acontece. Um homem tureza das coisas, tem um fim. Um dia, tes e as escolas sem alunos encerradas: co- lítica e o cheiro a pólvora, porventura se-
é quem é, mais o seu
doquealgunshistéricos
dissipado o nevoeiro do espelho, com a bro-lhe o TGV sem passageiros e as au- ca, das investigações policiais, resta a
bom nome, a sua hon-
jornalistasacham,
miserável realidade das facturas para pa- to-estradas sem utentes. Cobro-lhe a opor- questão essencial, a questão política: as
ra, os princípios que
queinvertaoónus
gar, extinto o charme do fado, do sol e do tunidade perdida de ensinar à clientela do condições em que, de facto, foi licencia-
traiu ou não traiu. E vi-
daprovacriminal.Mas
bidonville algarvio, Portugal dar-se-á con- regime que tem de aprender a viver sem do o Freeport. Porque é que um minis-
ve com isso e é julga- ta de que está sozinho e de que já nin- os negócios e os favores do Estado. Por- tro do Ambiente (que é suposto defen-
do por isso pelos outros. Mas nem tudo o oónusdeprovaraboa-fé guém se deixa seduzir pelo seu jogo de que essa é razão primeira para a inviabili- der o Ambiente contra os interesse imo-
que nos acontece, nem todo o julgamen-
políticacomqueagiu,
mulher fatal da Europa, o país “que deu dade de Portugal. Mas é facto que, como biliários), acaba por aparentemente de-
to dos outros, depende das nossas acções
essa,cabe-lheporinteiro.
novos mundos ao mundo”, o Infante, as está à vista de todos, não há, presentemen- fender com zelo o contrário disso, che-
ou da nossa vontade. Como escreveu o caravelas e toda essa conversa gasta. (A te, substituto para governar Portugal e, as- gando ao ponto de afastar directivas eu-
Miguel Esteves Cardoso, eu não faço
Edissodependeonosso
despropósito: estive em Sagres no sim sendo, a execução em lume brando ropeias de protecção do Ambiente? Por-
ideia o que andam a fazer os meus tios, os
futuropróximo
fim-de-semana passado, fui visitar, mais de José Sócrates é a pior perspectiva possí- quê fazer uma lei ad hoc, redesenhando
meus cunhados, os meus irmãos, os que uma vez, aquela “intervenção” na Forta- vel para 2009. os limites da ZEP do Tejo, exactamente
me são mais próximos e que seguem a leza, e o que vi não foi rastos da memória E mais uma coisa me poderia deixar à medida dos interesses do Freeport?
sua vida sem que eu tenha de saber dela. do Infante, mas sim uma infame paisa- constrangido, não sei se por deslocado re- Porquê a insólita rapidez com que o pro-
Amanhã pode acontecer-me a mim, co- Outubro. Não é argumento decisivo nem gem de terceiro-mundo, que é o verdadei- flexo patriótico: que um organismo poli- cesso é despachado, assim que chega ao
mo a qualquer um de nós, que as acções de substância, mas é um facto — e um ro e eloquente retrato da suposta “moder- cial inglês, chamado Serious Fraud Offi- gabinete de José Sócrates? Porquê a le-
dos que nos são próximos nos atinjam facto a ter em conta, enquanto se avança nidade” com que os tolos se distraem e ce, funcionando na dependência do PM viandade e o abuso de tudo legalizar três
por tabela, sem qualquer culpa ou respon- com pinças nesta história. nos pretendem distrair). Os países, tal co- britânico, se ache autorizado a mandar dias antes de umas eleições que o gover-
sabilidade nossa. É a vida. O segundo facto digno de meditação é mo as pessoas, podem viver da aparência uma carta rogatória à polícia portuguesa no de então já sabia perdidas? E porque
Manifestamente, eu acho que o tio e o que, derrubado Sócrates, o país fica entre- ou da substância. Mas não viverão sem- onde declara o nosso PM suspeito de “ter é que José Sócrates começou por dizer
primo de José Sócrates não se recomen- gue à deliquescência. É possível que, co- pre da aparência se não tiverem substân- solicitado, recebido ou facilitado paga- que não tinha tido intervenção directa
dam. Mas não posso julgá-lo por isso: a mo escreveu José Miguel Júdice, partin- cia que a suporte. mentos” para licenciar o Freeport, com no assunto, para depois acabar a confes-
família não se escolhe nem se controla. do de outro contexto, Portugal se torne O terceiro facto constringente é que o base num depoimento de um vulgar cida- sar telefonemas e reuniões?
Eu não vou julgar José Sócrates porque o ingovernável e que deixe até de reunir caso Freeport veio piorar ainda mais este dão inglês, um tal sr. Smith — que, aliás, Estas são as questões essenciais a que
tio meteu um empenho para que ele rece- condições para existir, enquanto país in- cenário cinzento em que vivemos, estes parece que, afinal, o desmente. Alguém José Sócrates tem de responder e que, sal-
besse o sr. Smith, ao serviço do Freeport, dependente — essa é, aliás, uma hipótese dias de eterna chuva que duram já desde imagina a nossa PJ a mandar uma carta vo melhor opinião, ainda não vi que tenha
ou porque o primo depois tomou a inicia- de trabalho que há muito considero co- o ano passado, este terror de ouvir as notí- rogatória à Scotland Yard dizendo que, feito satisfatoriamente. O resto — dizer
tiva de cobrar essa audiência ao Free- mo coisa possível e mais verosímil do que cias da manhã e saber que fechou mais com base num depoimento do sr. Silva, que está à disposição da justiça, que espe-
port. E também não vou esquecer o enre- se imagina. Eu penso que Portugal não uma empresa, que mais umas centenas declara Tony Blair, por exemplo, suspei- ra que ela seja rápida e faça o seu cami-
do político em que toda esta história nas- vale muito como nação e como povo — ou milhares de trabalhadores e famílias fo- to de ter sido corrompido para apoiar a nho — tudo isso são trivialidades. Mas nas
ce. Comecemos por aí. aquilo que nos separa da inviabilidade ram lançados na miséria, esta raiva de des- invasão do Iraque? Pois, mas o problema quais, culpado ou inocente, ele se irá afun-
O caso Freeport nasce, em 2005, como não é tanto como, por inércia, nos habi- cobrir que mais uma gentil alma, cavalhei- é se, como julgo, a carta rogatória da polí- dando, passo a passo, enquanto para to-
uma claríssima manobra de desespero tuámos a pensar. Vejo Portugal um pou- ro da finança e comendador da nação, cia inglesa não diz apenas isso e contém dos nós não se tornarem claras as razões
eleitoral do pior PSD que já existiu. Nas- co como aquelas mulheres fatais que, en- não passava afinal de um vulgar bandido sim muitos mais elementos que justifi- pelas quais o Freeport de Alcochete foi
ce de uma promíscua trama tecida entre tre os vinte e tal e os quarenta e poucos de salão, um salteador de ilusões. Porque cam uma investigação séria e não aquele aprovado e naquelas circunstâncias. Nin-
um inspector da PJ, jornalistas a soldo e anos, se habituaram a reinar como prin- José Sócrates não tem sido um primei- desdenhoso comunicado da Procurado- guém lhe pode exigir, ao contrário do que
homens de mão do poder de então. E re- cesas, seduzindo e cativando tudo à roda ro-ministro perfeito — longe disso! — mas ria-Geral da República... O problema alguns histéricos jornalistas acham, que
nasce agora em ano de eleições e, quei- e julgando-se eternamente senhoras do é o melhor ou o menos mau que podemos (sem que daí se faça qualquer juízo de cul- inverta o ónus da prova criminal. Mas o
ra-se ou não, como a única arma que o jogo. Mas, um dia, olham-se ao espelho, arranjar. O seu forte foi ter a vontade e a pabilidade ou suspeição sobre Sócrates), ónus de provar a boa-fé política com que
PSD tem para tentar evitar a anunciada e percebem que o seu poder de sedução es- coragem de mudar o que gritantemente é se, ao contrário do que diz a PGR, os agiu, essa, cabe-lhe por inteiro. E disso de-
inevitável vitória de Sócrates e do PS em tá a desaparecer e correm para as plásti- estava mal. O seu fraco foi ter tomado por ingleses não se limitaram a, com base pende o nosso futuro próximo.