CARTAS ABERTAS
Razões abundantemente reflexivas
para me faltar coragem para uma coisa
Onde o nosso Comendador explica que tem um documento para partilhar,
mas não o partilha, muito provavelmente por se ter posto a pensar em excesso
outro dia — porque estas coisas aconte- Este segredo é fundamental para o bom andamento
N
cem sempre noutro dia, nunca neste dos processos e para a defesa dos arguidos. Isso todos o
dia, ou num qualquer dia definido —, sabem. Por exemplo, para que o suspeito não destrua
consegui um documento precioso. Nor- provas convém ele não saber que é suspeito. Mas é útil
malmente, quando obtenho coisas pre- não se saber que ele é suspeito, também, porque no caso
ciosas guardo-as e não digo a ninguém. de ser totalmente inocente não foi espalhada lama sobre
Mas, em alturas em que me encontro o seu nome. Quer isto dizer que o segredo protege a inves-
(depois de me perder) num estro mais comungante, parti- tigação e o cidadão, simultaneamente.
lho-as. É o caso deste documento precioso, meus caros Porém, raramente — e sublinho que é muito raramen-
leitores, que aqui vos deixo, tal qual o Aleixo. te —, os jornais têm — vá lá saber-se como! — acesso a
O documento em causa intitula-se “Escutas ao Ex.mo estes segredos. E tontos, em vez de os guardarem, como
Senhor Engenheiro José Sócrates” e foi deixado, por es- devem fazer os bons jornalistas, que nunca escrevem o
quecimento, junto das redacções de cinco diários e dois que sabem, publicam-nos. Ora isto, ou dá cabo do nome
semanários, pelo menos. da pessoa ou dá cabo da investigação.
Não posso aqui revelar o conteúdo das escutas, por- Imaginem agora que alguém quer dar cabo da investi-
que como sabeis é proibido e eu, seja por civismo, seja gação. Uma boa hipótese é conseguir que alguém viole o
por me faltar coragem, gosto de cumprir a lei. segredo de justiça de forma a que o caso se comece a
Mas posso adiantar algumas reflexões sobre a quebra parecer com uma canalhice que lhe estão a fazer. Passa-
do segredo de justiça, visto não estar em segredo de justi- dos uns dias, o próprio aparece com ar de vítima e faz
ça o facto de ela ser quebrada. umas declarações em defesa da honra que caem bem ao
povo e desprestigia o processo.
Mas, ao contrário, imaginem agora que alguém quer
mal a um homem totalmente inocente, por uma razão
qualquer mesquinha, como ter-lhe sacado a namorada
ou ser primeiro-ministro de Portugal. Nesse caso basta
saber que há uma investigação em curso para colocar cá
fora umas insinuações que se colam e não desaparecem,
mesmo depois de se declarar a inocência do visado. Até
porque, estando o processo em segredo, também nin-
guém pode desmentir cabalmente a mentira, salvo com
frases como “não há indícios juridicamente relevantes”,
algo que se dissesse sobre mim eu ficava preocupado. A
calúnia, como se sabe na célebre ária do “Barbeiro de
Sevilha”, começa em suave brisa e acaba em tempestade.
O segredo, podendo ser bom para a investigação e
para a defesa do nome do visado, pode, assim, ser ainda
melhor para espalhar lama sobre uma pessoa ou — ma-
quiavélico, mas nada que não ocorra — para o próprio
visado desprestigiar o processo.
Foi por matutar nisto que, quando vi o documento
que decidi partilhar convosco, reflecti: quem o terá aqui
deixado? O visado? Alguém que lhe quer mal? Ao serviço
de quem estarei quando vos contar o que ele diz?
Pensei, pensei, pensei e cheguei a uma conclusão: não
tenho coragem de partilhar as conclusões convosco.
Pedindo perdão pela cobardia, subscrevo-me,
COMENDADOR MARQUES DE CORREIA SALGADO
CRISTIANO
ILUSTRAÇÃO
82 REVISTA ÚNICA·31/01/2009