VICTOR SILVA TAVARES possível chegar àquela complexidade sem
NÃO TEME ARRISCAR NA
cálculo?” E no entanto, também o seu qua-
SUA AVENTURA POÉTICA
QUASE MARGINAL. EDITA
drado, feito de estudos sem cálculo, viria a
E PUBLICA O QUE LHE
ter as qualidades harmónicas do cânone. Li-
APETECE. DEFINE-SE
COMO UM SER CULTU-
vros não-normalizados, estrangeiros às impo-
RAL INDISCIPLINADO sições da indústria do papel, analógicos, cozi-
dos à mão com linha por umas senhoras arte-
sãs. Livros que são “uma entidade espiri-
tual”. Cujos processos de comercialização es-
capam às lógicas da cadeia de intermediários
do livro. Feitos por alguém um bocado dife-
rente, que os faz não para comprar casas e
carros, mas por razões de outras elevações.
Originalidade que lhe permitirá, espera, che-
gar ao fim da vida verificando ter sido “à bra-
va parecido” consigo próprio.
Lutar por uma existência digna Há buracos
de balas nos vidros das marquises do bairro
de habitação social de Chelas onde vive Lobé-
lia Morais (Bela), 45 anos, mãe de Rúben, de
18, atingido há 14 por uma doença rara e inca-
pacitante que mudou a vida toda. Na escada
do prédio, um pesado mecanismo que assegu-
ra a mobilidade da cadeira de rodas do filho,
evidencia a disparidade — de uma vida trans-
formada numa dura cadeia de tarefas, que
apenas a força moral desta mãe torna possí-
vel. No quarto de Rúben, uma quantidade im-
pressionante de espanta-espíritos pende do
tecto como uma metáfora ao desafio constan-
te que é manter na dignidade e na esperança
uma vida humana marcada por níveis de ad-
versidade inconcebíveis. No dia 11 de Abril de
1995, Bela foi buscar o filho (então com qua-
tro anos) ao jardim infantil para o levar ao
hospital porque lhe doía a perna esquerda.
do salgada”, que diz não poder evitar, mas a porque são quadrados ou, aliás, “rectângulos Mera dor de crescimento, e também de um
verdade é que não olha “a vida pelo olho do achatados”, com um quadrado lá dentro — o bocadinho de ansiedade, disseram-lhe. “U-
cu”. Habituado (afeiçoado) a salvar-se pelo desafio em forma de cânone que Silva Tava- ma palmada e passava. Voltei para casa com
riso, moldado pelo “espírito novo funda- res coloca aos autores das capas da &etc (pin- uma receita de Maxilase.”
mental que foi o surrealismo”, considera-se tores e ilustradores criteriosamente escolhi- O menino foi internado e submetido a todo
um “ser cultural indisciplinado e pouco da- dos) desde o primeiro livro. Formato inspira- o tipo de exames de diagnóstico. “Ao terceiro
do a proselitismos”. Sem qualquer preocu- do numa conversa tida com Almada Negrei- dia de internamento deixou de andar, depois
pação de fazer diferente. Ou de ser diferen- ros, em que, a propósito dos intermináveis de engolir, perdeu a visão, deixou de falar (a
te. “Sou um tipo normalíssimo da vida. Na estudos geométricos sobre os painéis de Nu- língua enrolava-se e os sons saíam todos mis-
minha Madragoa [onde nasceu e vive] pou- no Gonçalves, o Mestre lhe explicou que ha- turados), de conseguir beber água, escorria
ca gente sabe que faço livros.” via chegado ao estudo geométrico certo sem tudo. Foi rápido e brutal.” Bela sentiu-se
Livros que também eles são diferentes, cálculo. “Uma boutade, pensei. Como era enlouquecer mas em vez de se despenhar,
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