SOCIEDADE
atacha Fontinha escre- tatuou umas estrelas que substituem os AS TRANSEXUAIS LARA
N
veu na nuca a palavra anéis que deixaram de apetecer. Há uma ta-
CRESPO E EDUARDA
SANTOS FOTOGRAFA-
Honra. Não diz a idade, tuagem que lhe falta, em homenagem a Por-
DAS JUNTO A UM IMPO-
porque a informação ro- tugal, que ama incondicionalmente: “Uma ca-
NENTE RETRATO DA
DESASSOMBRADA DONA
tula. “Cada um tem a ravela portuguesa com a frase dos ‘Lusíadas’
MARIA PIA, A BENEMÉRI-
idade que quer ter.” Mu- ‘Por mares nunca dantes navegados’.” TA, TAMBÉM ELA UMA
lher diferente, sim, e “Há vinte anos era mais complicado. Eu ia
MULHER MUITO DIFEREN-
TE PARA A ÉPOCA
muito, apesar de todas na rua e diziam-me que parecia um boi, com
as nova-iorques, berlins e amesterdões deste a minha argola no nariz. Mas hoje em dia, eu
mundo, em que Portugal é ainda outro — não posso ir trabalhar para um banco de ar-
avesso à diferença. Mãe do Átila, nove anos, gola no nariz, e no entanto, em que é que isso
nome legalmente negociado, porque à data me impediria de fazer o meu trabalho?”
omisso na lista de nomes admitidos, a mu- Boa pergunta, que se impõe também no
lher tatuada é uma filha única nascida numa caso das transexuais (male-to-female) Lara
família tradicional, que os novos piercings e Crespo, 37 anos, e Eduarda Santos, 50, que o
tatuagens de Natacha foram comprometen- mercado de trabalho discrimina em razão do
do com a modernidade. Que sim, que se vê mesmo princípio. “Sofro uma dupla discrimi-
como uma pessoa fora do baralho, embora nação”, diz Eduarda. “Por ser transexual e
sobretudo como alguém diferente por den- por ter 50 anos.” Vivem as duas com o subsí-
tro. Alguém que prefere “levar a vida a brin- dio social de desemprego de Eduarda — 300
car”, tendo a coragem de parecer, diz, quem euros. “Quando deixar de ter direito não
realmente é — um outro debate ainda assim. sei... mas se calhar vou assaltar bancos ou
“Ser diferente não é só estar tatuado, é sê-lo pessoas na rua.” Não admira que uma per-
mesmo perante a vida.” Ter, também, a cora- centagem esmagadora dos transexuais portu-
gem de enfrentar os outros, com os seus pre- gueses (acima dos 90%) se prostitua para so-
conceitos apensos. “Às vezes as pessoas abor- breviver. Mas se vivessem em Espanha, onde
dam-me para me perguntarem se eu não já existe uma lei de identidade de género que
acho que exagero um bocado. Eu respondo reconhece as disforias da Natureza, Lara e
que são pontos de vista! A tatuagem ainda é Eduarda teriam já novos nomes — o que mu-
vista como uma coisa de margem.” dava logo tudo. Em Portugal, antes da cirur-
Natacha trocou os trapos da moda “por gia dita de redesignação sexual, nada feito.
um novo amor, algo que não saía mais, que “No trabalho é inultrapassável”, explica
ficava na pele”. Cada tatuagem conta uma Eduarda — porque os empregadores se recu-
história de coragem, “tal como o faziam as sam a celebrar contratos de trabalho com
dos braços dos ex-combatentes” do ex-Ultra- pessoas cujo género definido pelo nome pró-
mar. “É uma maneira de marcar o que é mui- prio não corresponde ao do género aparente.
to forte. Já os primitivos o faziam!” — ador- Mas não só: quando um transexual vai reno-
nar-se de símbolos significantes. “Isso é mile- var o bilhete de identidade ou recorre a um
nar. As sociedades modernas deram a volta serviço de urgência hospitalar, é inevitável a
ao texto, mas é a mesma coisa.” Para ela, a situação caricata de ouvir um nome cujo gé-
tatuagem é a técnica de ilustração mais per- nero não corresponde ao visível perceptível.
feita que existe, porque, ao contrário do mu- “Chamam alguém com um nome de homem
ral ou do papel, que o tempo sempre rasga, e aparece uma mulher.”
apaga, suprime velozmente, a pele tem ainda Lara assumiu-se como transexual há nove
outras qualidades. “Há textura, opacidade, anos (sete dos quais com acompanhamento
envelhecimento, não há nada como a pele.” clínico psiquiátrico), Eduarda há cinco. Para
Nas costas, Natacha tatuou a Vida, porque é elas não se trata de uma questão de cora-
o que carrega — di-lo, rindo-se da vida que gem, porque isso é para quem pode escolher.
cada um de nós leva às costas. Nos dedos, “A nossa parte psicossexual, que define a
42 REVISTA ÚNICA·31/01/2009