SOCIEDADE
identidade de género [feminina ou masculi- TERESA RICOU,A
na] está ao contrário do nosso corpo. É uma
PRIMEIRA MULHER-PA-
LHAÇO PORTUGUESA,
dualidade terrível, que provoca enorme so-
ACREDITA QUE, SE
frimento”, explica Lara. Amigas há oito
ESTIVESSE EM AMESTER-
anos, Lara e Eduarda vivem juntas há três —
DÃO, SERIA IGUAL A
MUITA GENTE. “AQUELA
querendo isto significar que partilham uma CIDADE NÃO SÓ RECO-
casa, e não que vivem amorosamente. Lara
NHECE COMO PROMOVE
A DIFERENÇA”
é heterossexual, Eduarda lésbica, orienta-
ções sexuais — falamos aqui do sentido do
desejo — que assumem também com inegá-
vel coragem, numa sociedade em que os este-
reótipos comandam. “Estou com umas ma-
minhas 36 muito bonitas”, diz Lara, cuja últi-
ma intervenção foi um implante mamário
que a enche de orgulho feminino. Conquista
que não pode partilhar com a família, que
insiste em chamar-lhe Zé Carlos e em tra-
tá-la como um homem, apesar de todas as
transformações visíveis que o tratamento
hormonal evidencia. “Há uma tensão enor-
me quando estou com eles, retrocessos cons-
tantes. Não me aceitam como mulher.” Para
Eduarda, “a generalidade dos médicos trata
isto como uma doença mental. A única van-
tagem da psiquiatrização da transexualida-
de em Portugal é o facto de as cirurgias de
redesignação serem pagas pelo Estado”.
Vantagem que em absoluto é parca, num
mundo que se obstina em olhar para a tran-
sexualidade como uma doença demasiado
rara. Mas em cada 25.000 pessoas nasce um
transexual male-to-female.
PioneiraRara é também Teresa Ricou, ou Te-
té, a mulher-palhaço, como é mais conheci-
da. “Sou um bocado maluca e vou um bocado
mais à frente. No fundo, sou igual a mim pró-
pria!”, relativiza. “Se eu estivesse em Ames- jecto cultural, educativo e social que faz a tem um preço. Se me sinto sozinha? Isso é
terdão era igual a uma data de gente, porque diferença. “Mas as pessoas nem sempre a re- comum às pessoas do espectáculo, e não me
é uma cidade que não só reconhece, como conhecem, e por isso não a valorizam.” Diz mete medo. Fui suficientemente vadia a vida
promove a diferença.” Mas é em Lisboa que que nunca aceitou pertencer à “massa disfor- toda para não precisar que tomem conta de
vive a nossa primeira mulher-palhaço (nem me e mole, sem músculo e sem convicções” mim.” Para ela, o 25 de Abril foi uma tempes-
ninguém se lembra de mais nenhuma), esco- que define o rebanho. tade depressa demais substituída por uma bo-
lha ousada para esses outros tempos em que Por vezes sente-se cansada de ter de estar nança torpe. “A tempestade acalmou logo, e
se afirmou. E concede: “Tenho uma respira- constantemente a afirmar as mesmas coisas. ficaram as folhas, que ninguém limpou. Está
ção da vida diferente. E nunca desisto.” Qua- “Vale a pena usar a arte contra a exclusão. a começar a cheirar um bocadinho a mofo...
lidades que explicam também a longevidade Vale a pena ousar na vida e não desistir, e Eu fiz essa revolução”, diz, falando da tempes-
e as conquistas da Escola de Artes Circenses talvez seja aí que reside de facto a minha dife- tade que tudo parecia varrer. “Mas, e as ou-
e Ofícios do Espectáculo Chapitô — um pro- rença: na determinação. Claro que tudo isto tras pessoas, o que é que estiveram a fazer?
44 REVISTA ÚNICA·31/01/2009