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SENTIMENTOS CRÓNICA FEMININA
Palco Brasília
Brasília celebra as culturas de Portugal e do Brasil
“Aqui é o lugar onde o espaço mais gal e do Brasil — é a primeira edição de Palcobrasília,
se parece com o tempo” semana de debates literários e leituras, exposições (Os
Clarice Lispector, sobre Brasília Lugares de Pessoa e a mostra fotográfica Aguarela do
Brasil), espectáculos (Madredeus e Adriana Calcanho-
rasília é difícil de amar. Como se fosse to), cinema. A iniciativa deve-se ao esforço conjunto
B
um corpo à espera da alma. Mas é essa das empresas Casa da Cultura e Girau Projectos Socio-
espera que é sedutora, porque integral- culturais, em parceria com a Embaixada de Portugal. O
mente despida de ansiedade. Não há projecto foi lançado pela Casa da Cultura, criada por
engarrafamentos de trânsito nesta um grupo de advogados com o objectivo de fazer de
cidade com mais de dois milhões de Brasília um pólo cultural, para cortar com a absoluta
habitantes, onde é impossível viver sem hegemonia do eixo litoral Rio-São Paulo, que concentra
carro. As casas e os prédios estão embalados em ricos oitenta por cento da receita cultural do país. O advoga-
arvoredos — a pobreza foi varrida para as cidades-satéli- do Marcos Joaquim Alves, um dos fundadores da Casa
te. A miséria não se vê, a riqueza não se vê, a angústia da Cultura, pretende criar um fluxo de trocas culturais
não se vê, quase não se vê gente. Brasília parece um entre Portugal e o Brasil, homenageando assim o país
cenário de cinema, belo e sem interior. Sobre ela escre- dos seus pais, ambos transmontanos: “Sou o primeiro
veu Clarice Lispector: “Foi brasileiro da família, isso
INÊS
PEDROSA
construída sem lugar para cria-me uma responsabilida-
ratos. Toda uma parte nos- de especial, quer em relação
sa, exactamente a que tem à minha cultura de origem,
horror de ratos, essa parte quer para com o Brasil, e
não tem lugar em Brasília. Brasília, que é ainda uma
Eles quiseram negar que a cidade periférica em termos
gente não presta. Constru- culturais. E Brasília tem
ção com espaço calculado público para cultura.” O
para as nuvens.” Centro Cultural Banco do
Tudo se reparte por Brasil, uma espécie de Fun-
sectores, como nos filmes de dação Gulbenkian local,
ficção científica. O seu char- apresenta agora a peça
me advém também dessa “Maria Stuart”, de Schiller,
determinação de planeamen- em tradução de Manuel
to que a fez nascer e a tor- Bandeira. São três horas de
nou imediatamente datada: muito bom teatro, com
uma cidade em que os servi- interpretações sublimes de
ços se agrupam corporativamente tem, como diz o Júlia Lemmertz (como Maria Stuart) e Clarice Niskier
pianista Adriano Jordão, conselheiro cultural português (como Rainha Elizabeth). As sessões esgotam, o público
no Brasil, “qualquer coisa de medieval”. Foi o Marquês aplaude de pé, durante longos minutos. Afinal Brasília
de Pombal quem, em 1761, propôs que se mudasse a tem gente e sede de cultura. Brasília recorda-nos que
capital do império português para o interior do Brasil. há muitos Brasis dentro do Brasil. Se espalmarmos a
Quase dois séculos depois, inaugurava-se Brasília, já União Europeia sobre o mapa do Brasil, sobra ainda
não imperial, antes sonho democratizador de um imen- muito território brasileiro. Esta capital estranha, ex-
so país independente. O então presidente Juscelino tra-terrestre, desalmada, serve também para nos recor-
Kubitschek de Oliveira declarou: “A fundação de Brasí- dar que o Brasil pode ser o que cada um quiser. E que
lia é a fundação do equilíbrio da nação brasileira”. pode crescer a partir do nada. O céu de Brasília é um
A presença minimalista e imponente das obras de cinema de céus. Um catálogo de infinitos — azuis, cin-
Oscar Niemeyer obscurece o arrojo do desenhador da zentos, carregados de nuvens ou lisos como o gigantes-
cidade, o urbanista Lúcio Costa, que criou Brasília em co lago (artificial, claro) da cidade. Um mundo fora do
forma de avião, ou de águia. Os brasilienses sublinham mundo. Um sonho, uma invenção exacta. n
a qualidade de vida nesta capital verdejante. Quando
suspiramos de saudade do Rio, recordam-nos que o Rio
GOZBLAU
é snob, familiar e estratificado, enquanto que Brasília,
ALEX
sede do poder, é despojada de preconceitos, feita à
medida de quem a quiser tornar sua.
Por estes dias, Brasília celebra as culturas de Portu- ILUSTRAÇÃO
60 REVISTA ÚNICA·31/01/2009