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JOSÉMANUELDOSSANTOS
Q
INTERVALO
sei que a esperança é uma flor que
abre num caule frágil ao vento. Fa-
lam dele como de um feiticeiro, de
um curandeiro, de um xamã. Falam
Quando quero sentir mais leve o peso não me conheço, nem sequer me vejo dele como se fosse um próximo, um
que, em mim, de mim me pesa, ando passar, senão em imagens de um eu parente, um amigo.
pelas ruas da cidade velha porque sei que não sou. Vêem-me, e eu sei que o Subitamente, passa um gato, e eu
que a tristeza delas é ainda maior que ver não lhes diz o que vêem. Por isso olho o seu olhar agudo. Há mais ver-
a tristeza minha. Vou andando, ora de- lhes agrado ou lhes desagrado por ra- dade nesse olhar do que no meu, fati-
vagar ora depressa, e, ao olhar o que zões que são mais deles do que mi- gado dela. Há mais alegria nesse
passa ou o que fica, é de mim que par- nhas. Ando sob a claridade que come- olhar do que no nosso, desapossado
to mais pesado e é a mim que chego ça a ser escuridão e, enquanto as lu- dela. O gato pára, e a sua hesitação
mais leve. Vou andando, com uma zes não se acendem, há um hiato en- aproxima-o de mim. Depois, corre e
imobilidade que se desloca, e vejo e tre tudo e o seu contrário, inversão de desaparece numa esquina esquecida.
oiço e sinto e penso, assim os animais sinais, reverso de sentidos. Nunca mais o verei: morre no meu
olham, ouvem, sentem e pensam, ex- Ando e oiço o que falam os que fa- olhar, mas deixa nele o seu fantasma.
cepto naquela parte deles que não lam sozinhos ou acompanhados. Oi- Agora, passa uma mulher vestida
existe para o saber. ço as suas palavras inúteis, gastas e com roupas velhas que são a única coi-
Ando sob a luz que se vira para den- repetitivas. Oiço os que dizem ape- sa que possui. Anda ao lixo e, da sua
tro e por isso escurece. Ando e sei nas o que já ouviram, cópias de um boca sem dentes, saem palavras que
que ter destino é um erro que não se original que nunca foi deles. Oiço os se ouvem como se fossem a faca que
corrige. Por isso, nos meus passos há medíocres que dizem a mediocrida- corta ao meio as que o nosso pensa-
todas as certezas que se mudam nou- de dos outros para negarem a sua. mento soletra: “Não há direito, uns
tras tão incertas como essas. Ando na- Oiço os infelizes que choram a felici- com tanto e outros com nada. Ando
quele intervalo entre o que sou ao dade alheia por saberem que nunca aqui porque Deus é um cego a quem
não ser e o que não sou ao ser. Ando e será própria. ninguém dá esmola!”
sei que aqueles que passam e se dis- Oiço a voz deste tempo que é feita À porta da igreja fechada, uma rapa-
traem da sua distracção olhando-me de exclamações baixas, gritos cal- riga toca flauta no cimo das escadas,
vêem um homem de meia-idade que mos, desesperos mansos, angústias e o seu amigo não se importa de a ce-
parece um pouco mais novo do que é, medidas, suicídios mudos. Oiço as vo- der um pouco para ganhar a recom-
com um andar que procura o seu rit- zes que se negam na raiz e que se pensa que os sustenta. A quem a olha
mo e a sua atenção, uma cara que se desmentem no auge. Oiço falar de exclama: “Dêem os vossos trocos à
ausenta do seu sorriso para estar desemprego, de falência, de ruína, flautista, que alegra a rua e alegra a
mais de acordo com o anoitecer, um de medo. E fico exposto à interroga- vista.” E o som da flauta corre contra
cabelo que começa a não ser só escu- ção que me pergunta: como é possí- mim e empurra-me para o meu passa-
ro e que cede na sua continuidade. Es- vel não haver nisto o tempo de uma do sem tempo. Lembro o que foi e o
ses vêem-me sem me conhecer e as- rebelião? Oiço falar de um homem que deixou de ser, o que viveu e o que
sim ficam perto de mim, que também negro que está num gabinete oval e morreu. A rapariga continua na sua
beleza triste a tocar: “Só, incessante,
um som de flauta chora,/ Viúva, grá-
cil, na escuridão tranquila,/ — Perdi-
da voz que de entre as mais se exila,/
Oiço falar de um homem negro que está num
— Festões de som dissimulando a ho-
ra” (Camilo Pessanha).
gabinete oval e sei que a esperança é uma flor que
E no céu, que já é outro, a lua abre
abre num caule frágil ao vento. Falam dele como
sobre nós a sua luz deserta.
jmdossantos@netcabo.pt
de um feiticeiro, de um curandeiro, de um xamã colunista regular do “Actual”
4 31 Janeiro 2009 Expresso
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