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P 1 0 O Sentido da Culpa


Nota20 - dezembro 2013


Naquela tarde solarenga de um Outono, em fim de ciclo, mas, ainda amena, sentado num banco do Jardim João de Deus, junto à Biblioteca Municipal, rodeado pela at- mosfera verdejante, o chilreio e acrobacias dos pássa- ros e grande quantidade de vestígios da folhagem da época, vagueando desordenadamente pelo chão, em tons acastanhados ou alaranjados, encontrava-se Mi- guel. Observava a paisagem, absorto em torrentes de ideias ou pensamentos a calcorrearem a sua mente livre, por enquanto, pelo menos, diga-se desde já. A liberdade de pensamento tem destas coisas. Nem sempre o protagonista escolhe as linhas da reflexão, como o baú de tralhas armazenadas e, por vezes, úteis ou remexidas ao encontro de necessidades. Estranhou a campainha cerebral a chamá-lo para dissertação so- bre a culpa. Pior é que Miguel, nesse mesmo instante, tinha culpa de dissertar sobre a culpa. Sentia-se, podia-se dizê-lo, culpado por estar a pensar sobre a culpa. Paradoxalmente, viu-se a concluir que a culpa é sempre dos outros para o comum das pessoas, pertencendo um pouco a todos para o senso comum. E, então, o que pensa a pessoa comum sobre este as- sunto? - A culpa é sempre dos outros, claro! – perentoriamente afirmado. Miguel procurou no armazém da mente casos concre- tos. Assim, não cumprir as regras de trânsito é, vulgarmen- te, culpa do outro ou dos outros. - Sai da frente, ó careca! Então, é culpa do careca que deu o sinal… É culpa do careca não ter dado sinal… O careca não podia ter da- do sinal e parado, para mudar de direção e cumprir a prioridade legal. Se o careca não parar provoca um acidente, mas, se parou, o acidente dá-se porque o careca parou. Quando a culpa não é dos carecas (gente execrável essa dos carecas!), não é de ninguém ! Os carecas, aliás, são todos iguais. Não deviam existir! Só causam problemas. Abaixo os carecas! Sem os carecas, a vida seria bem melhor. Sem o careca, ele teria batido no carro com priorida- de!... Mas a culpa não era dele… Era do raio, do estafermo do careca que ia à sua frente


Cá está: - A culpa é sempre do outro! Se alguém é rico, é por culpa dos outros. Isto é, dos parvos que trabalham para ele, dos palermas que ali- nham nos seus esquemas. Dinheiro arrasta dinheiro!... E se um dia deixar de ser rico, a culpa é dos outros! Pois! Dos trabalhadores que só sornavam. Dos vigaristas dos bancos. Das empresas que não lhe compraram. Das modas fora de moda. Do gerente que foi um tanso. Da porra do mercado! A culpa é sempre dos outros! Alguém tem culpa de ser parvo, ignorante, abstruso Não! Ninguém tem culpa nenhuma disso, muito menos o pró- prio parvo , ignorante e bruto. Nem foi culpa das suas mãezinhas, que Deus tenha… A culpa é deste país que ajudou uns e ignorou outros! Ignorou os que nunca quiseram saber da porcaria dos livros ou aprender com esforço. Fosca-se, primeiro há que meter bejecas no bucho e ter vida de chico-esperto! A culpa é, mas é dos profes emproados que só chatei- am! Já viram alguma pedra querer estudar e aprender? Claro que não! A culpa é delas? São pedras e querem continuar a sê-lo. Porque haveri- am de se importunar para mudar a sua atitude? Querem é ficar sossegadinhas e pronto. É como eles! Pronto! A culpa é do raio dos livros. Deviam ser todos queimados! Quem precisa deles? Ninguém! Para quê aprender e saber? A culpa é de quem tem essas ideias parvas. É que não há outro termo.


São uns idiotas chapados! Armados em bons e sábios. São é um zero à esquerda! Uns lunáticos. Uns psicopa- tas! Pronto, uns doidos a precisar urgentemente de ser inter- nados. Alguém tem culpa de ser bandido ou ladrão? Óbvio! Ninguém! Ora essa! Sempre viveram assim. Iam agora viver de outra maneira? Parece que está tudo maluco… Sabem roubar e filar os outros… Mas a culpa não é de- les! A culpa é dos que andam aí a mostrar-se! Essa agora… Andar, feitos finesse, madames e meninas bem com roupinhas apetitosas e objetos vistosos… Pois! Mesmo a pedir-lhas. Pronto! Eles fazem-lhes a vontade… Mas culpa não têm! E Miguel sentiu ainda mais culpa, por deambular sobre o sentido da culpa, quando verificou que o espetáculo da natureza, a envolvê-lo, pleno de vida, merecia total atenção, concentração e admiração.■


(Extrato de um manuscrito intitulado “Depois de Ontem” ) Professor Agostinho Pinho


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